quinta-feira, dezembro 09, 2004 |
Natais by Violeta
Este tema é difícil. Não gosto dele, mas não lhe consigo fugir.
Tornou-se um ritual meu, muito íntimo, passar pelos sucessivos natais como quem passa por um exame final. Tenho de o fazer, tenho de me preparar, tenho de o passar. A classificação final ficará inscrita no meu cadastro de vida. Como é impensável um chumbo e como nunca gostei de notas medíocres, faço o possível para ter pelo menos um bom menos. Passe a redundância.
Para este exame armo-me da minha melhor ironia apimentada com uma pitada de paciência. Faço a minha análise crítica à sociedade de consumo, teço inúmeras considerações sobre o egoísmo, o consumismo e a falta de valores, chateio toda a gente com o discurso obrigatório, evito as catedrais das compras, utilizo os feriados de Dezembro para fazer caminhadas pela natureza e apanhar troncos e azevinho pelos campos fora e, nunca, mas nunca, compro novas luzes para a minha árvore. Cada luzinha que se funde todos os anos significa mais um ano que passou. Ainda tenho imensas que acendem. As apagadas, essas, amo-as na mesma, no brilho que já me deram.
Gostaria de ser capaz de fazer uma análise rigorosa sobre o fenómeno do natal. Gostaria de perceber porque razão nesta última semana, tive vários telefonemas de vozes doces das funcionárias das instituições bancárias onde estou a dever a casa, o carro e a alma, a oferecerem-me mais um cartão de crédito cheio de promoções e bónus. Gostaria de analisar porque razão não consigo ir ao supermercado comprar algo tão simples como batatas e cebolas para o jantar, sem me deparar com famílias inteiras de olhar alucinado empurrando carros plenos de caixas de brinquedos e dvs e games boys, que se misturam com os carrinhos de bebés com crianças que talvez gostassem mais de um passeio à beira mar, mas que passarão os seus feriados e domingos entalados entre luzes artificiais e música a metro com sabor adocicado a natal.
Gostaria de dizer a estas famílias que irão pagar estas facturas com lágrimas nos próximos meses. Gostaria de mostrar às crianças que natal é uma festa de amor. Gostaria de poder comprar as minhas batatas e cebolas, sem culpa, por não estar a encher o carrinho com barbies e action mans e toalhas e guardanapos cheios de desenhos com ar de festa.
Ao invés, sorrio à menina da caixa, minha amiga de conversas do tamanho inverso das filas dos clientes, desejo-lhe um bom resto de dia e em silêncio e troca de olhares, sei que hoje ela preferia estar em casa com a família. Mas também sei que a menina da caixa ganha a dobrar se trabalhar ao feriado. É natal, pois. Despeço-me com um sorriso cúmplice.
- Até sábado, Cristina. (Eu sei que porque hoje não estiveste com o teu filho, tens direito a dois dias de folga).
Se soubesse, faria uma análise rigorosa sobre o natal. Vocês mereciam. Mas não seria capaz. Só sou capaz de um sopro intimista. Uma coisa de nada. Minha. Porque me apetece e porque gosto de me partilhar convosco.
Prefiro pensar porque razão não gosto do natal. Porque tive natais felizes, porque na época dos “natais das memórias” eu morava num bairro de Lisboa onde existia uma pequena drogaria que vendia brinquedos. A drogaria do Sr. Venceslau. Porque desejei uma boneca que andava e que me sorria da montra onde eu passava todos os dias, a caminho da escola. Desejei-a como nunca desejei nada na minha curta vida de então… e essa boneca foi minha. E eu fui dela. Num natal feliz.
Depois de uma série de natais felizes como estes, em que tudo fazia sentido porque o menino Jesus estava nas palhinhas no meu pequeno presépio e eu tapava-o com algodão à noite para ele não ter frio, aconteceu um facto estranho. Acho que cresci…
Houve um último natal nesta timeline. Logo a seguir a esse natal que tinha uma morte anunciada, o meu pai lembrou-se de morrer. Eu sei que ele não fez por mal. Deve tê-lo chateado imenso a doença que o minou. Eu fiquei zangada com ele, obviamente. Não tinha nada que me morrer antes do prazo em que eu precisava dele. Mas teimosamente cumpriu o fim dele. Deu-me cabo dos natais futuros.
Tornei-me estéril nesse natal. O meu corpo recusou a natalidade logo a seguir. Desse episódio não há história, apenas vazio. Mas há milagres, ou então a natureza é sábia. Tive a benesse de me acontecer mais um filho passado outro natal. Nasceu de olhos abertos. Nasceu para ser feliz. Nasceu porque era uma prenda.
Ele gosta do ritual mágico do natal. Gosta de fazer a árvore de natal. Gosta do presépio. Inexplicavelmente, lembra-se das minhas memórias de natais felizes. Todos os anos lhe ofereço uma prenda. Conto-lhe como o avô gosta dele.
Um dia destes, escreverei uma análise sociológica sobre o fenómeno do natal. Hoje, não tenho tempo. Vou cumprir os rituais. Espero ter outro bom menos neste natal. Espero passar mais este exame.