quarta-feira, julho 28, 2004 |
Requerimento
Tenho saudades das férias de Verão, daquelas férias enormes, dos meses passados a brincar na rua ou a jogar às caricas, das duas ou três semanas de praia, do Parque de Campismo de Santa Cruz, da praia do Cabedelo, da Zambujeira, de São Pedro de Moel… Tenho saudades das férias já mais tarde, no secundário, das tardes de snooker no Tabuleiro e no Paraíso, dos cafés, do bolo de bolacha do Snack-Bar Cristina, das primeiras noites em que saía sozinho sem a chancela dos irmãos… Tenho saudades do primeiro Festival Sudoeste e da viagem feita num Fiat Uno em que, mais que o motor, contava a força de vontade.
Tenho saudades e, por outra, não tenho. Não queria reviver nada daquilo, foi vivido e bem, é só um tempo que merece ser lembrado. Do que eu tenho mesmo saudades é do tempo em que tinha tempo e esse tempo era meu e eu estoirava-o como bem entendia. Não me arrependo de quase nada do que não fiz, mas arrependo-me ou revolto-me ou desgosto-me com o que não fiz porque não tive tempo. São coisas muito diferentes, deixar de fazer por opção ou deixar de fazer porque não temos tempo.
Sou um gajo um bocado tonto, porventura, mas acho mal que os outros de quem gosto tenham o usufruto da minha companhia condicionado à disponibilidade de um tempo que devia ser meu mas que não sou eu quem gere. V.Exa. repare: não estou a pôr em causa o valor do trabalho, nem a hipotecar essa instituição quase sacramental da carga horária semanal. Não. Ninguém vive do ar, os discos estão pela hora da morte e eu sou agradecido a quem me garante a carcacinha e o conduto – se bem que a minha frugalidade me leve a pensar se não seria melhor transformar o subsídio de refeição em horas de folga… O que me amofina é não ter o tempo – nem, por vezes, o espírito – para estar ou ligar ou escrever a toda a gente que me tem afecto. Eu, por exemplo, tenho um afecto muito especial por mim e Deus é testemunha de que nem sempre ou quase nunca me dou o tempo de que preciso.
Longe de mim querer co-responsabilizar Vossa Senhoria pelas mossas que me causam as alegações de que “não ligo a ninguém”, “só te lembras de ligar quando precisas de alguma coisa”, “ainda estás vivo?!” ou “agora deves ter outros amigos, não é?”. São injustas porque continuo a gostar de todos como sempre gostei e faria qualquer coisa por essas pessoas – desde que tenha tempo.
Compreenderá V. Exa. que um dos atributos mais importantes de quem tem tempo é poder perdê-lo, e é isso que a mim me falta. Poder perdê-lo a ouvir, a falar, a ler, a passear, a vegetar, a dormir, ao telefone, nos cafés, na cama, com pessoas, com uma pessoa, sozinho, em multidão, mas perdê-lo, perdê-lo declaradamente, sem remorsos nem dúvidas, sem desculpas ou justificações. Recuperar essa sensação ímpar, que eu deixei no já longínquo ano de mil nove e noventa e nove, de que num dia meu poderia caber tudo quanto eu quisesse seria, estou certo, um contributo importante para um assinalável incremento na minha produtividade – e só a minha modéstia me exime de a qualificar também ela de assinalável…
Ante o exposto, venho requerer a V. Exa. se digne conceder-me, a título extraordinário, o gozo de três meses de férias pagas, a iniciar a 1 de Agosto próximo e terminando a 31 de Outubro.
Pede deferimento.
Tenho saudades das férias de Verão, daquelas férias enormes, dos meses passados a brincar na rua ou a jogar às caricas, das duas ou três semanas de praia, do Parque de Campismo de Santa Cruz, da praia do Cabedelo, da Zambujeira, de São Pedro de Moel… Tenho saudades das férias já mais tarde, no secundário, das tardes de snooker no Tabuleiro e no Paraíso, dos cafés, do bolo de bolacha do Snack-Bar Cristina, das primeiras noites em que saía sozinho sem a chancela dos irmãos… Tenho saudades do primeiro Festival Sudoeste e da viagem feita num Fiat Uno em que, mais que o motor, contava a força de vontade.
Tenho saudades e, por outra, não tenho. Não queria reviver nada daquilo, foi vivido e bem, é só um tempo que merece ser lembrado. Do que eu tenho mesmo saudades é do tempo em que tinha tempo e esse tempo era meu e eu estoirava-o como bem entendia. Não me arrependo de quase nada do que não fiz, mas arrependo-me ou revolto-me ou desgosto-me com o que não fiz porque não tive tempo. São coisas muito diferentes, deixar de fazer por opção ou deixar de fazer porque não temos tempo.
Sou um gajo um bocado tonto, porventura, mas acho mal que os outros de quem gosto tenham o usufruto da minha companhia condicionado à disponibilidade de um tempo que devia ser meu mas que não sou eu quem gere. V.Exa. repare: não estou a pôr em causa o valor do trabalho, nem a hipotecar essa instituição quase sacramental da carga horária semanal. Não. Ninguém vive do ar, os discos estão pela hora da morte e eu sou agradecido a quem me garante a carcacinha e o conduto – se bem que a minha frugalidade me leve a pensar se não seria melhor transformar o subsídio de refeição em horas de folga… O que me amofina é não ter o tempo – nem, por vezes, o espírito – para estar ou ligar ou escrever a toda a gente que me tem afecto. Eu, por exemplo, tenho um afecto muito especial por mim e Deus é testemunha de que nem sempre ou quase nunca me dou o tempo de que preciso.
Longe de mim querer co-responsabilizar Vossa Senhoria pelas mossas que me causam as alegações de que “não ligo a ninguém”, “só te lembras de ligar quando precisas de alguma coisa”, “ainda estás vivo?!” ou “agora deves ter outros amigos, não é?”. São injustas porque continuo a gostar de todos como sempre gostei e faria qualquer coisa por essas pessoas – desde que tenha tempo.
Compreenderá V. Exa. que um dos atributos mais importantes de quem tem tempo é poder perdê-lo, e é isso que a mim me falta. Poder perdê-lo a ouvir, a falar, a ler, a passear, a vegetar, a dormir, ao telefone, nos cafés, na cama, com pessoas, com uma pessoa, sozinho, em multidão, mas perdê-lo, perdê-lo declaradamente, sem remorsos nem dúvidas, sem desculpas ou justificações. Recuperar essa sensação ímpar, que eu deixei no já longínquo ano de mil nove e noventa e nove, de que num dia meu poderia caber tudo quanto eu quisesse seria, estou certo, um contributo importante para um assinalável incremento na minha produtividade – e só a minha modéstia me exime de a qualificar também ela de assinalável…
Ante o exposto, venho requerer a V. Exa. se digne conceder-me, a título extraordinário, o gozo de três meses de férias pagas, a iniciar a 1 de Agosto próximo e terminando a 31 de Outubro.
Pede deferimento.
Arrotos do Porco: