quarta-feira, fevereiro 18, 2004 |
18 de Fevereiro de 1908
O meu avô nasceu há 96 anos. Foi uma terça-feira. Era o quarto de seis filhos que os meus bisavós geraram. Nasceu no concelho de Ferreira do Zêzere. E viveu lá até que pôde, se descontarmos o serviço militar. Hoje divide o tempo entre Ferreira do Zêzere e Tomar, que é como quem diz entre as casas do filho e da filha. A filha dele é a minha mãe. Pronto.
O meu avô - o único que conheci, o outro morreu novo, novo demais - faz hoje 96 anos. Tem dois filhos, quatro netos e três bisnetos. É viúvo. É pensionista. Tem um glaucoma. Quase não vê. Usa bengala. Tem o cabelo branco mas mesmo branco. Tem o nariz longo. Tem um riso inimitável. Tem um sentido de humor como poucos.
O meu avô chama-se Américo. Casou aos 27 anos - cedo demais, reconhece. Não terá sido sempre fiel, mas só a morte o separou da minha avó. Trabalhou no campo, agricultor de subsistência, imagem padronizada do minifúndio do Ribatejo Norte. Tem orgulho em que os meus pais não tenham vendido as terras que eram dele. E eu também.
O meu avô ensinou-me muito. Mais do que ele pensa. A paciência, a bonomia, a inutilidade de certas discussões, o poder apaziguador de uma piada ou de um outro tema de conversa. E outras coisas... Lembro-me de passear com ele em Tomar, tinha eu uns 15 anos, e de ele comentar sobre uma senhora que passava: "Hum... Deixa estar que esta também apanhava com seis pastéis de nata a ferver pela conaça adentro!". Tinha 83 ou 84 anos, na altura, mas ainda se "lembrava"...
Sempre gostou de mulheres. E de vinho. E das suas terras. Dos seus animais, ainda que se enfurecesse com facilidade com a teimosia da mula, a Carriça. De conversar. De inventar umas patranhas. De jogar às cartas. Nunca aprendeu a ler ou a escrever. Mas aprendeu outras coisas: sabia fazer poços, sabia levantar paredes e muros, sabia quando havia de semear e de colher. Serviu-lhe.
O meu avô faz hoje anos e está feliz. Falei com ele. Sente-se bem com a vida que teve e gosta ainda da vida que tem. Não tem "casos pendentes". Foi um bom pai, gerindo como podia a carestia. É um grande avô. Não percebe que raio de curso é que eu tirei - se não é médico nem advogado nem engenheiro é o quê?! - mas tranquiliza-se porque tenho um emprego. Gosta de mim. Gosta que lhe dêem atenção e que o ouçam e eu gosto de o ouvir. Gosta de rezar o terço. Não fuma, como dizia o anúncio.
96 anos. Ele costumava dizer: "Se chegar aos 70, faço uma festa!". E o mesmo valia para os 80 e depois para os 90. Sempre achou que morreria cedo. Bem feito. Ninguém o mandava achar fosse o que fosse a esse respeito. E nunca fez festa nenhuma. Nem é preciso. Basta que ele lá esteja. Que me agarre os braços para ver se estou gordo ou magro. Que fique feliz por achar que eu saio a ele nos pulsos magros. Que se vá rindo. E queixando da mínima beliscadura à sua saúde invejável. E que vá largando pérolas como "Duas mulheres juntas como é que gozam?... Aquilo de bater prato com prato não deve dar grande resultado..."
O meu avô nasceu há 96 anos. Foi uma terça-feira. Era o quarto de seis filhos que os meus bisavós geraram. Nasceu no concelho de Ferreira do Zêzere. E viveu lá até que pôde, se descontarmos o serviço militar. Hoje divide o tempo entre Ferreira do Zêzere e Tomar, que é como quem diz entre as casas do filho e da filha. A filha dele é a minha mãe. Pronto.
O meu avô - o único que conheci, o outro morreu novo, novo demais - faz hoje 96 anos. Tem dois filhos, quatro netos e três bisnetos. É viúvo. É pensionista. Tem um glaucoma. Quase não vê. Usa bengala. Tem o cabelo branco mas mesmo branco. Tem o nariz longo. Tem um riso inimitável. Tem um sentido de humor como poucos.
O meu avô chama-se Américo. Casou aos 27 anos - cedo demais, reconhece. Não terá sido sempre fiel, mas só a morte o separou da minha avó. Trabalhou no campo, agricultor de subsistência, imagem padronizada do minifúndio do Ribatejo Norte. Tem orgulho em que os meus pais não tenham vendido as terras que eram dele. E eu também.
O meu avô ensinou-me muito. Mais do que ele pensa. A paciência, a bonomia, a inutilidade de certas discussões, o poder apaziguador de uma piada ou de um outro tema de conversa. E outras coisas... Lembro-me de passear com ele em Tomar, tinha eu uns 15 anos, e de ele comentar sobre uma senhora que passava: "Hum... Deixa estar que esta também apanhava com seis pastéis de nata a ferver pela conaça adentro!". Tinha 83 ou 84 anos, na altura, mas ainda se "lembrava"...
Sempre gostou de mulheres. E de vinho. E das suas terras. Dos seus animais, ainda que se enfurecesse com facilidade com a teimosia da mula, a Carriça. De conversar. De inventar umas patranhas. De jogar às cartas. Nunca aprendeu a ler ou a escrever. Mas aprendeu outras coisas: sabia fazer poços, sabia levantar paredes e muros, sabia quando havia de semear e de colher. Serviu-lhe.
O meu avô faz hoje anos e está feliz. Falei com ele. Sente-se bem com a vida que teve e gosta ainda da vida que tem. Não tem "casos pendentes". Foi um bom pai, gerindo como podia a carestia. É um grande avô. Não percebe que raio de curso é que eu tirei - se não é médico nem advogado nem engenheiro é o quê?! - mas tranquiliza-se porque tenho um emprego. Gosta de mim. Gosta que lhe dêem atenção e que o ouçam e eu gosto de o ouvir. Gosta de rezar o terço. Não fuma, como dizia o anúncio.
96 anos. Ele costumava dizer: "Se chegar aos 70, faço uma festa!". E o mesmo valia para os 80 e depois para os 90. Sempre achou que morreria cedo. Bem feito. Ninguém o mandava achar fosse o que fosse a esse respeito. E nunca fez festa nenhuma. Nem é preciso. Basta que ele lá esteja. Que me agarre os braços para ver se estou gordo ou magro. Que fique feliz por achar que eu saio a ele nos pulsos magros. Que se vá rindo. E queixando da mínima beliscadura à sua saúde invejável. E que vá largando pérolas como "Duas mulheres juntas como é que gozam?... Aquilo de bater prato com prato não deve dar grande resultado..."
Arrotos do Porco: