quarta-feira, dezembro 03, 2003 |
O meu SPA...
...não tem nada a ver com esta fotografia, sacada de qualquer lado sem pensar duas vezes - nem uma, confesso - em direitos de autor. De repente, toda a gente desatou a falar de spa's e de resorts. Em especial, aquela purulenta camada de jovens profissionais de sucesso que passam férias aqui e ali e fazem curas de sono e mesoterapia e acendem velas relaxantes por tudo e por nada e que substituíram a terrível mania dos cartões de visita pela sacrossanta pergunta "qual é o teu spa?". Como tenho enormes complexos e não gosto de me sentir sozinho no mundo, decidi arranjar um spa, um sítio onde me sinta bem e de onde saia com energias renovadas.
O meu spa é o Café Paraíso, em Tomar. Claro que não é assim que respondo, não. Eu sou muitíssimo esperto - não sei se já tinham reparado... E como sou muitíssimo esperto, respondo: "O meu spa é o Paraíso, em Tomar". Suprimindo a palavra "café", faço um vistão porque ninguém conhece e pensam que é uma coisa muito selecta e muito moderna. Todas as noites rezo a Santa Rita de Cássia por ser assim esperto como um alho e conseguir mentir com um ar credível.
O Café Paraíso, como o nome indica, é um café, ou seja, um estabelecimento onde se serve café e seus derivados, tisanas, refrigerantes, bebidas espirituosas e algumas comidas ligeiras no campo da pastelaria fina, dos salgados e desse fabuloso mundo da sande e da tosta. Fica na "rua principal" de Tomar, a Corredora, funciona há mais de 70 anos e é um dos cafés mais bonitos que conheço. É um espaço amplo, mantém a graça única dos anos 20/30, tem um pé direito que faz salivar os construtores de hoje em dia ("isto dava para três andares, meu amigo, três andares!"), tem quatro colunas, mobiliário da época, dois janelões enormes para a dita Corredora e um salão de jogos nas traseiras.
O que torna o Café Paraíso num sítio único é o facto de estar sempre lá. Eu sei que a frase é críptica, mas eu desmonto-a: às 7h30 da manhã, temos o Paraíso a abrir. É uma tradição de longa data, os funcionários dos serviços da zona dirigem-se ali para o pequeno-almoço e para a leitura dos jornais comprados ao lado, na Tabacaria Discal.
Durante a manhã passam por ali reformados, ociosos e estudantes que faltam às aulas. A hora do almoço é muito calma e a partir das 14h começa a juntar-se o grupo das professoras primárias reformadas e das paroquianas de São João Baptista, às quais, a partir das 15h, se juntam as tribos juvenis de hoje em dia - todas, sem excepção - e às 17h chegam as mães que querem dar de lanchar aos filhos.
A partir das 18h, a caridosa gerência começa a brindar os presentes com uma banda sonora à base de standards de jazz. A frequência diminui, os empregados mais antigos são rendidos por rapaziada mai'nova, e cai-se no mais agradável dos limbos, vendo o tempo passar muito devagar, transportado pelas pessoas que sobem e descem a rua.
O jantar é uma hora morta e, de repente, sem que nada o fizesse prever para quem lá tivesse passado apenas uma tarde, o Café Paraíso torna-se no sítio mais animado da "noite tomarense", o que quer que esta infeliz expressão signifique. Alunos do Politécnico, alunos do secundário, jovens trabalhadores, a pseudo-elite cultural, os conspiradores, os "aspiradores", tudo se junta no Paraíso, mais tarde ou mais cedo.
O barulho é muito, a acústica é estranha, a música é sempre excelente mas nem sempre perceptível. E toma-se o pulso à cidade e é aquele o único sítio onde eu consigo compreender que Tomar ainda existe, que não é o mais lindo dos fósseis nem um antónimo de futuro.
O Café Paraíso é um sítio onde se pode estar sempre que se tem tempo. Ninguém nos escorraça porque as mesas são para refeições. Ninguém nos vem perguntar, com ar ameaçador, se não queremos mais nada depois de termos consumido. Ninguém nos diz "vamos fechar" antes das 2 da manhã. Ninguém nos chateia.
À porta, ainda está uma placa que diz "reservado o direito de admissão". Essa discricionaridade já não é praticada, mas aquela expressão tem um fundo de verdade. Quando somos "admitidos" naquele espaço, ele passa a ser um bocadinho nosso. Ainda para mais, tem aquela potencialidade extraordinária: o meu Paraíso não é necessariamente o Paraíso dos outros, pois tudo depende das horas, do tempo, do ritmo de vida de cada um.
É este o meu spa. Sem massagens, sem banhos de lama, sem algas, sem aromoterapia, sem máscaras de argila, sem toalhas enroladas à cintura, sem piscinas, sem saunas nem banhos turcos. É só um sítio onde sinto que recupero o tempo que me foge noutras ocasiões.
...não tem nada a ver com esta fotografia, sacada de qualquer lado sem pensar duas vezes - nem uma, confesso - em direitos de autor. De repente, toda a gente desatou a falar de spa's e de resorts. Em especial, aquela purulenta camada de jovens profissionais de sucesso que passam férias aqui e ali e fazem curas de sono e mesoterapia e acendem velas relaxantes por tudo e por nada e que substituíram a terrível mania dos cartões de visita pela sacrossanta pergunta "qual é o teu spa?". Como tenho enormes complexos e não gosto de me sentir sozinho no mundo, decidi arranjar um spa, um sítio onde me sinta bem e de onde saia com energias renovadas.
O meu spa é o Café Paraíso, em Tomar. Claro que não é assim que respondo, não. Eu sou muitíssimo esperto - não sei se já tinham reparado... E como sou muitíssimo esperto, respondo: "O meu spa é o Paraíso, em Tomar". Suprimindo a palavra "café", faço um vistão porque ninguém conhece e pensam que é uma coisa muito selecta e muito moderna. Todas as noites rezo a Santa Rita de Cássia por ser assim esperto como um alho e conseguir mentir com um ar credível.
O Café Paraíso, como o nome indica, é um café, ou seja, um estabelecimento onde se serve café e seus derivados, tisanas, refrigerantes, bebidas espirituosas e algumas comidas ligeiras no campo da pastelaria fina, dos salgados e desse fabuloso mundo da sande e da tosta. Fica na "rua principal" de Tomar, a Corredora, funciona há mais de 70 anos e é um dos cafés mais bonitos que conheço. É um espaço amplo, mantém a graça única dos anos 20/30, tem um pé direito que faz salivar os construtores de hoje em dia ("isto dava para três andares, meu amigo, três andares!"), tem quatro colunas, mobiliário da época, dois janelões enormes para a dita Corredora e um salão de jogos nas traseiras.
O que torna o Café Paraíso num sítio único é o facto de estar sempre lá. Eu sei que a frase é críptica, mas eu desmonto-a: às 7h30 da manhã, temos o Paraíso a abrir. É uma tradição de longa data, os funcionários dos serviços da zona dirigem-se ali para o pequeno-almoço e para a leitura dos jornais comprados ao lado, na Tabacaria Discal.
Durante a manhã passam por ali reformados, ociosos e estudantes que faltam às aulas. A hora do almoço é muito calma e a partir das 14h começa a juntar-se o grupo das professoras primárias reformadas e das paroquianas de São João Baptista, às quais, a partir das 15h, se juntam as tribos juvenis de hoje em dia - todas, sem excepção - e às 17h chegam as mães que querem dar de lanchar aos filhos.
A partir das 18h, a caridosa gerência começa a brindar os presentes com uma banda sonora à base de standards de jazz. A frequência diminui, os empregados mais antigos são rendidos por rapaziada mai'nova, e cai-se no mais agradável dos limbos, vendo o tempo passar muito devagar, transportado pelas pessoas que sobem e descem a rua.
O jantar é uma hora morta e, de repente, sem que nada o fizesse prever para quem lá tivesse passado apenas uma tarde, o Café Paraíso torna-se no sítio mais animado da "noite tomarense", o que quer que esta infeliz expressão signifique. Alunos do Politécnico, alunos do secundário, jovens trabalhadores, a pseudo-elite cultural, os conspiradores, os "aspiradores", tudo se junta no Paraíso, mais tarde ou mais cedo.
O barulho é muito, a acústica é estranha, a música é sempre excelente mas nem sempre perceptível. E toma-se o pulso à cidade e é aquele o único sítio onde eu consigo compreender que Tomar ainda existe, que não é o mais lindo dos fósseis nem um antónimo de futuro.
O Café Paraíso é um sítio onde se pode estar sempre que se tem tempo. Ninguém nos escorraça porque as mesas são para refeições. Ninguém nos vem perguntar, com ar ameaçador, se não queremos mais nada depois de termos consumido. Ninguém nos diz "vamos fechar" antes das 2 da manhã. Ninguém nos chateia.
À porta, ainda está uma placa que diz "reservado o direito de admissão". Essa discricionaridade já não é praticada, mas aquela expressão tem um fundo de verdade. Quando somos "admitidos" naquele espaço, ele passa a ser um bocadinho nosso. Ainda para mais, tem aquela potencialidade extraordinária: o meu Paraíso não é necessariamente o Paraíso dos outros, pois tudo depende das horas, do tempo, do ritmo de vida de cada um.
É este o meu spa. Sem massagens, sem banhos de lama, sem algas, sem aromoterapia, sem máscaras de argila, sem toalhas enroladas à cintura, sem piscinas, sem saunas nem banhos turcos. É só um sítio onde sinto que recupero o tempo que me foge noutras ocasiões.
Arrotos do Porco: