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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


quinta-feira, dezembro 11, 2003

A ILUSÃO DA ORDEM



Não consigo. Por mais que queira, é escusado. Ao longo da minha ainda breve existência, tenho desposado bastas virtudes - a modéstia à cabeça, claro - que assim se vieram juntar ao rol nada desprezível daquelas com que nasci. Há uma, no entanto, que se vai sempre eximindo a tão gratificante matrimónio: a organização, essa virtude de má vida.

É que não consigo mesmo. Nem na vida pessoal, nem na vida profissional. Nem tão pouco consigo conceber cabalmente o conceito. As coisas existem, estão onde as deixámos, ainda lá estarão se ninguém lhes mexeu e, com mais ou menos esforço, sempre se encontram. E as pessoas também. Agendas? Datas de aniversário? Arquivos? Ordem alfabética? Divisões por assuntos? Mal sei o que são.

Admito. Admito, modestamente, que este facto me poderá tornar menos luzidio aos olhos de algumas moças casadoiras. Misturo roupa interior (lavada, valha-nos isso) e roupa de vestir nas mesmas gavetas - onde também cabem pastas, molhos de correspondência presos com elásticos e outras coisas que o tempo e o bolor me impedem de identificar... biscoitos? bombons? sacos de cheiros? Acho que só o Instituto Ricardo Jorge se poderá pronunciar com certeza.

Concedo. Concedo, modestamente, que eventuais empregadores poderiam mudar de ideias se vissem como fica qualquer superfície de trabalho depois de eu por lá estar um ou dois meses. Não tenho alergia ao papel, felizmente, e ele também não parece ter alergia a mim, a julgar pela forma como ele se multiplica e se empilha em formações periclitantes que motivam os suspiros das equipas de limpeza. Tenho várias dezenas de post-its soltos, já sem cola, que voam de cada vez que uma porta se abre. Envelopes diversos, livros, cadernos, folhas, canetas velhas, chávenas de café, garrafas de água, material de escritório, tudo partilha o mesmo espaço num são convívio inclusivo e integrador. Nenhum objecto, por mais bizarro, se sentirá malquisto numa secretária que eu ocupe.

Tudo isto vai motivando uns olhares estranhos, uns sussuros no corredor, o desgosto dos meus pais e a consternação de quem comigo já coabitou pessoal ou profissionalmente. Poderia ainda perdurar uma ténue esperança se eu fosse daqueles exemplares do macho lusitano que espalham roupa suja, lenços de papel usados e cascas de amendoim por onde quer que passem mas que têm muito cuidado nas suas coisas, sejam elas ferramentas, livros, discos, dvd's, miniaturas automóveis, selos ou (lembrando um velho texto do Mimosa) pacotes de açúcar. Mas não. Lembro-me que houve uma vez em que ordenei alfabeticamente os meus discos de vinil... lembro-me bem: foi há dois anos. Estiveram assim, durante uns meses, mas não me dava jeito nenhum. Acho que foi por essa altura que percebi a grande virtude de uma existência sem sombra de organização: a frequência com que encontramos o que não procuramos.

A organização espartilha-me a memória. Não fomos feitos um para o outro, reconheço-o com modéstia. A confusão, sim; esse é o meu reino! Não quero arrumar a minha vida. Assim, está tudo ali, em qualquer lado - e não será pela ilusão da ordem, que tantas vezes resulta do arquivamento em compartimentos estanques, que eu me hei-de esquecer.


Arrotos do Porco:


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