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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


quinta-feira, dezembro 18, 2003


...e não se pode abortá-los?

Há uns anos foi usado em Portugal o perigosíssimo instrumento do Referendo para aquilatar da sensibilidade do povo a uma matéria tão melindrosa quanto o era (e é) a despenalização do aborto. Na altura, o debate decorreu entre dois campos formados à pressa: de um lado os fundamentalistas cristãos e o seu maniqueísmo rançoso - "se não são contra o aborto não acreditam em Deus!" - e do outro as supostas consciências livres, que na verdade eram uma sopa pastosa e, mostrou-o o resultado do debate, tão nauseabunda quanto a primeira.

A questão do aborto per si tem duas vertentes claras: uma técnica, da responsabilidade dos cientistas, e outra psicológica, eminentemente feminina, e que tem a ver com a dimensão materna que é exclusiva das mulheres (sem prejuízo dos esforços trôpegos masculinos de macaquear coisas que, na realidade, não lhes estão geneticamente inscritas). Destas, tipicamente, se ouviu muito pouco. A relevância social do aborto foi abordada, sim, mas abafada pelos gritos histéricos de "assassinos!" (de um lado) e "obscurantistas!" (do outro).

O resultado é o conhecido. O povo preferiu a praia, o cinema, os centros comerciais, etc., e cagou no referendo. Os poucos que se manifestaram fizeram-no maioritariamente a favor da penalização do aborto. Independentemente das interpretações legalistas que se possam fazer deste resultado, a verdade é que ganhou o "não", e esta vontade popular tem que ser respeitada. Análises interpretativas não passam de poeira no ar e uma fraca tentativa de sacudir a água do capote por quem devia ter acautelado a seu tempo a abstenção e não o fez.

Temos agora um "consenso" a adivinhar-se no horizonte, a propósito da descriminalização do aborto. De repente, toda a gente acha que é feio e desumano perseguir judicialmente as mulheres que entendem ter que se submeter a essa tragédia e que, por tal, não devem ser consideradas criminosas (com a consequente pena de prisão). Passa o aborto a contra-ordenação, e a sua prática sujeita a multa.

Esta é a formulação falaciosa que nos oferecem. Porque a realidade é outra: o que passa a contra-ordenação e sujeito a multa é o aborto clandestino. Ou seja, não se investiu no planeamento familiar, na educação sexual nas escolas, na criação de estruturas de apoio a mães solteiras e/ou adolescentes, na expedição dos processos de adopção, na assistência social, no licenciamento e fiscalização de profissionais para exercer a actividade, não se criaram clínicas ou outros instrumentos de saúde pública apropriados, etc., etc. Aplica-se uma multa e está tudo bem. As 11.000 mulheres que foram assistidas no Serviço Nacional de Saúde o ano passado por complicações surgidas após um aborto clandestino vão continuar a tê-las, mas vai deixar de ser crime. Delas, pelo menos, que das responsabilidades criminais dos políticos, que tratam com os pés a dignidade humana, ainda ninguém fala.

Depois de 2% a mais de IVA, do estacionamento pago, do 1/2 cêntimo na gasolina, nisto, naquilo e naqueloutro, prepara-se esta classe política que temos para criar mais uma fonte de receita na taxação encapotada de uma matéria de consciência tão trágica quanto esta. Não se pode abortá-los, rectroactivamente?

Arrotos do Porco:


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