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Vareta Funda

O blog dos orizicultores do Concelho de Manteigas


quarta-feira, janeiro 18, 2006

Correspondência japonesa - I




Eu podia fazer como outros e vir para aqui papaguear: já cá estou há 4 meses e o Japão é isto e aquilo e aqueloutro. Mas vocês sabem que eu e a modéstia e a modéstia e eu… e antes modéstia que moléstia. 4 meses são 120 dias, mais ou menos. 120 dias são mais horas do que eu tenho de contos de réis. E, ainda assim, é tão pouco. Sinto que eu e o Japão ainda só andámos aos beijinhos; para a rebaldaria completa há que lhe dar mais tempo. Qu’isto os países são como as mulheres sérias: muito simpáticas, muito simpáticas, mas pensam que se perdem quando se dão – conceito que me causa grande estranheza.

Ele há gente que fica embevecida e deslumbrada, sejam Moraes ou outros que tais (esta graçola é novecentista, hein?… eu sou um gajo de alta cultura, o tamanho das pernas é que me lixa!), e perora longamente sobre as diferenças e a unicidade deste povo e desta terra. Estou eu aqui para lhes tirar a razão? Nada disso. Estou aqui para assumir a minha ignorância. Ainda não falo (muito) japonês – algumas coisas básicas, mas falta-me o vocabulário lúbrico como: “aposto que ontem sentiste os pés frios… queres garantir que isso hoje não aconteça?”; “és muito parecida com a Imperatriz quando ela ainda era viçosa de carnes”; “isso de coçares a úvula com os pauzinhos é uma mensagem subliminar sobre as tuas capacidades?”; ou mesmo o corriqueiro “tem lá cuidado com os dentes, porra!”. Também me falta outro vocabulário, mas a novidão e o solteirio fazem-me reputá-lo como secundário – e as marcas dos arranhões involuntários estão aqui para corroborar esta escala de prioridades. Numa palavra: chiça. Que não os percebo quando falam. Eis o primeiro problema para uma eventual tentativa de discorrer sobre a unicidade japonesa. E ele há outros, ó: ainda pouco saí de Tóquio; ainda tenho muito para ver em Tóquio; ainda não conheço assim tantos japoneses; ainda só passei por 8 ou 9 terramotos (pequenos, felizmente); ainda nunca fui a casa de um japonês. Estou, portanto, tão habilitado para falar do que é único no Japão como está o Paulo Bento para treinar o Sporting.

Eis a verdade e nada mais que a verdade: ignaro e tolhido pelo medo do ridículo, respondo, se confrontado com um pedido para falar do que é diferente e especial nesta terra, como Bartleby: “preferia não o fazer”. Ou como a Romana: “não és tema p’ra mim / eu meresszzzççço muito maiszzzz”. Depende dos dias.

Imagino a comoção, o vale de lágrimas que acomete quem me lê: “eu a pensar que era desta que o Vareta voltava a escrever qualquer coisa de produtivo, com a sua verve extraordinária, com a sua graça na descrição para a qual não há encómios bastantes, com aquele ritmo que é só seu ainda que bebendo das lições de mestres maiores como Almada, Luiz Pacheco ou Álamo de Oliveira, com a sua fusão singular de lirismo e abjeccionismo, com uma exegese do quotidiano que é fruto da mais dolorosa escalpelização interior… eu a pensar isto tudo, e Deus sabe o que me custa!, que a minha cabeça já não dá para estas coisas, que se eu fosse a contar o que são as minhas ralações de todos os dias… enfim, cala-te boca!, e estou eu a pensar isto tudo e não é que é mesmo verdade e ele, o excelso Vareta, escreve mesmo qualquer coisa assim?… como não havia de chorar?… correm-me as lágrimas em barda e o engenho que as expele – ou motor de rega, motor de rega é mais moderno – o motor de rega que as expele é a mais pura e cristalina gratidão!!”. Sois simpática, leitora anónima (ou melhor, leitora Ana Sofia, natural da Carvalhosa, doméstica e divorciada), mas pecas – pecas por defeito e antecipação.

Escreverei, sim, escreverei aqui e agora. Fá-lo-ei, contudo, de modo mais asado à minha condição. Falarei não do Japão que é único mas sim do Japão que é como os outros. Qu’isto os países são como as mulheres sérias: “a mulher é com’ó automóvem / tem no peito o guiador / mas é abáxo do umbigo / que le trabalha ó motor”, cantavam os Viva Viana e tinham razão quando o faziam. Nalgumas coisas, quem viu um(a), viu todos(as). E, mesmo assim, há quem canse a vista com coisas bem piores.

Quando o sol brilha, as árvores no parque do Palácio Imperial projectam uma sombra perfeita no declive em que se encontram. Serão outras árvores que não as nossas, mas a sombra, que é delas, é mais sombra que delas e é tão bonita como as sombras na Mata dos Sete Montes. (isto já parece o Pessoa com o rio da minha aldeia… muda de registo, moço, deixa-te de bucolismos serôdios!)

A relação da maioria dos japoneses com a religião é como a nossa: uma coisa mais “à cautela; pelo sim, pelo não; se não faz bem também não faz mal” que ditada pela devoção ou por uma verdadeira fé. (isso; embarca pela sociologia de pacotilha à Óscar Soares Barata que vais longe… ganha tino, moço!)

Os japoneses bebem, e vão bebendo até terem bebido demais. Uma vez bebidos, são como os outros: expansivos, felizes, libertos, mais ou menos ruidosos consoante a capacidade do jerrycan genético. Os rapazes mai’novos, como os outros um pouco por todo o mundo, davam o mindinho esquerdo para ser o 50 Cent ou qualquer outro rapper que apareça num vídeo com um grande carro e gajas boas. Querem ser diferentes dos mais velhos e acabam por parecer todos iguais, os mais novos. O que, em si, é tudo menos novo. As gaiatas querem ser bonitas, olham para as outras com o mesmo desdém, adoram compras, esforçam-se por parecer mais velhas e maduras e tentam todos os truques para parecerem insinuantes – até que um dia aprendam que não há truque nenhum, há uma qualidade interior que não se constrói.

As fisionomias são tão capricho do Senhor como quaisquer outras. Qu’isto os países são como as mulheres sérias: antes feia, flácida ou anoréctica que na Corporación Dermoestética! Há de tudo. Há rostos lindos que nos reconciliam com o mundo e com “a vida espiritual e superior” de que falava Rimbaud. Há rostos que provam como Darwin era sábio. Há caras ordinárias, que me fazem lembrar colegas do ensino secundário: gente, como eu – julgarão vocês melhor que eu -, com nada de particular, sem beleza que rasgue, sem fealdade que magoe. Há caras que mostram desigualdades, caras de gente que se conformou com a ideia de “ser ninguém” e que me chocam por serem tão pouco, pela falta de esmero que não é escolha mas fado, pela tristeza, pelo riso infeliz.

Os vizinhos são vizinhos, em Tóquio como em Tashkent ou na Cedofeita. São curiosos, acham que têm o conhecimento exclusivo sobre uma espécie de “direito consuetudinário do condomínio” que vigorava antes da chegada de qualquer novo locatário, são prestáveis ou irritantes consoante o nosso humor e o deles. Alguns têm cães. Outros são casados.

Os velhos estão sozinhos e essa condição pesa-lhes no rosto, às vezes mais que a idade. Resistem e vivem e são um peso para quem tem que olhar por eles. Juntam-se, às vezes, e convivem – que é como quem diz: juntam-se e ficam sozinhos em grupo. Aqui como aí, parecem ser accionistas maioritários da empresa que tutela os bancos de jardim, esses centros de dia clandestinos.

Os pais querem o melhor para os filhos e sacrificam-se pela sua educação e, o mais das vezes, não receberão a gratidão que mereciam. Passeiam os bebés nos carrinhos, aos fins-de-semana. Levam os mais novos à escola. Compram-lhes bom material escolar como se isso pesasse no rendimento do aluno. Comparam-nos com os filhos dos outros, à falta de outro termo – compará-los consigo próprios é uma impossibilidade: “quando eu era da tua idade” faz tão pouco sentido aqui como em qualquer outro lado.

Os casais zangam-se, discutem, separam-se, juntam-se, fazem amor ou outra coisa menor, conhecem-se, surpreendem-se quando pensam que se conhecem, fazem contas, fazem dívidas, são felizes como malmequeres: muito, pouco ou nada.

E as crianças… Estas crianças são a mesma promessa, a mesma certeza de que há razão para que o bem – um bem, um qualquer – perdure, a mesma perfeição, a mesma transição instantânea entre o anjo e o monstro, as mesmas bocas de riso, os mesmos olhos de choro, as mesmas roupas sujas, a mesma transpiração no fim das brincadeiras, a mesma alegria ao sair da escola, o mesmo ser incondicionado. Moro perto de uma pré-primária. Se os ouço no recreio sinto como que um murro seco no estômago: pelo ruído e pela alegria, podiam ser os meus sobrinhos a brincar no Parque Infantil de Tomar. O Japão é só mais um país. As crianças japonesas, essas percebo-as quando “falam”, na linguagem primária e universal de quem não tem como esconder que está feliz ou que não está.

(tu não tens emenda… até ias encarreiradinho, com um ar de “doce melancolia” tão português quanto cabotino, e tinhas que estragar tudo com uma mensagem final de humanismo universalista à Padre Borga!… depois admira-te que dêem o Nobel a outro!)

Arrotos do Porco:

Continuo sem saber se sempre é verdade que a das japonesas é horizontal, mas entendi o que a ”Clara Pinto Correia” queria dizer com a tal de Alta cultura, obviamente estava a referir-se ao vareta


É um gosto ler-te Vareta.
Abraço.



Sim senhoras...uma "posta" de comer e chorar por mais...


são felizes como malmequeres: muito, pouco ou nada



je t'aime :)*





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